Um atentado às histórias do Palmeiras e do nosso futebol
O Palmeiras, antigo Palestra Itália, fundado em 26 de agosto de 1914 para congregar imigrantes italianos em São Paulo, comemorou nesse domingo, 2, seu décimo campeonato brasileiro, que pode ser considerado o sexto caso se desconsidere a unificação dos títulos nacionais oficializada pela CBF em 2010. Independentemente da polêmica, é consenso de que o Verdão ganhou com méritos a competição deste ano.
A festa do título, porém, não contou com o protagonismo do capitão Bruno Henrique, quase impedido de levantar a taça sozinho por um capitão que nunca vestiu a faixa palmeirense. Não contou com o protagonismo de Dudu, craque do campeonato, ou do sempre espontâneo e imprevisível Deyverson, o “Deyvershow”, herói improvável desta conquista.
Como se sabe, no lugar deles, o protagonismo foi de uma pessoa que, entre tantas atrocidades ditas ao longo da sua vida pública, afirmou, em 2015, em entrevista ao jornal Opção, de Goiás, que imigrantes são a “escória do mundo”. Recentemente, mesmo antes de assumir o cargo mais alto da República, provocou, entre outros incidentes diplomáticos, a saída de Cuba do programa Mais Médicos. O fato se deu após falas ameaçadoras e depreciativas contra os profissionais nascidos na ilha, o que, lógico, afetará principalmente aqueles que mais precisam do serviço: os probres que moram nos rincões do Brasil.
Quem me conhece pessoalmente e/ou acompanha o que escrevo neste espaço, sabe que tenho todas as divergências possíveis com relação ao presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL). Mas entendo que elas, as divergências, não são necessárias para se enojar com o show de horror que foi a participação do capitão reformado na comemoração do deca palmeirense. Minha postura seria igual caso o mesmo ocorresse com o candidato em que votei nos dois turnos da corrida presidencial, o professor Fernando Haddad (PT), ou com qualquer outro, mesmo ciente de que isso muito provavelmente não ocorreria.
Afinal, o que se viu no Allianz Parque não foi uma mera entrega de medalhas feita pelo futuro chefe do Executivo, que se diz palmeirense, a convite da própria diretoria do time campeão, e foi o caso, ou a convite da confederação que rege nosso futebol, a CBF, o que também aconteceu. O episódio de anteontem foi uma bajulação constrangedora e sem precedentes no futebol brasileiro.
Para ficar apenas na história recente, não houve nada disso no Brasileirão do ano passado, quando o goleiro Cássio levantou a taça para o Corinthians após recebê-la de Walter Feldman e Manoel Flores, secretário-geral e diretor de competições da CBF, respectivamente. Não houve nada disso há dois anos, quando o campeão foi o mesmo Palmeiras e a taça foi levantada por Dudu. Neste caso, houve, sim, oportunismo do então presidente do clube, Paulo Nobre, ao erguê-la junto com o atacante, assim como já havia feito em 2015 ao dividir o caneco da Copa do Brasil com Zé Roberto. Inclusive, em 2017, o então presidente corintiano, Roberto de Andrade, esperneou porque a CBF limitou o número de pessoas que poderiam entrar no gramado e o impediu de levantar o troféu do hepta brasileiro, uma tentativa de repetir o que já havia feito de maneira oportuna em 2015, no hexa. E, antes que alguém cogite, não há qualquer comparação razoável do “caso Bolsonaro” com o Corinthians campeão da Copa do Brasil de 2009 sendo recebido pelo ex-presidente Lula, em Brasília, um dia após a final. Existem outros tantos exemplos possíveis, nenhum que se aproxime do que aconteceu no último domingo na arena alviverde.
O que se viu ali foi o Palmeiras permitir que Bolsonaro se tornasse maior que seus dez brasileirões. Conceder a honraria a alguém que não disputou o torneio conquistado, não colaborou de nenhuma forma com o feito, não tem história no clube e jamais fez algo por ele — a não ser, claro, usá-lo para fins populistas, o que já fez com outras equipes, como, por exemplo, quando gritou o nome do rival Corinthians e vestiu a camisa dos quatro grades cariocas em diferentes ocasiões, conforme a conveniência. A mesma que o permitiu estar num campo de futebol para participar de uma comemoração favorável politicamente, mas o impediu de estar em sequer um debate da campanha eleitoral depois que sofreu o atentado a faca em Juiz de Fora (MG), em 6 de setembro. O mesmo Bolsonaro que, com bolsa de colostomia e tudo, levantou um troféu de 15 quilos, deu volta olímpica erguendo o prêmio e se eternizou na foto histórica junto com os campeões de verdade.
Repito: nunca antes se presenciou algo igual no nosso futebol (não, não é a mesma coisa que a delegação do Brasil visitar o presidente da República após conquistar uma Copa do Mundo, o que aconteceu nos cinco títulos). Nem na Ditadura Militar (1964-1985), período que tanto usou o futebol como ferramenta política e teve até Emílio Garrastazu Médici levantando a Jules Rimet no retorno da seleção brasileira que acabara de ser tricampeã mundial no México.
E sabe o pior? Se refletirmos bem, nada disso é tão surpreendente, pelo menos para quem acompanha de forma crítica a relação do Palmeiras com Leila Pereira, dona da Crefisa e da Faculdade das Américas, principais pratrocinadores do time nesta nova era vitoriosa e de cofres transbordando. Juca Kfouri e outros jornalistas já alertavam, há bastante tempo, para o caminho imoral que o clube tomava ao rasgar seu próprio estatuto em troca de caminhões de dinheiro e, por consequência, aceitar uma competição financeira excessivamente desigual com os adversários. A cara de um Palmeiras conservador, elitista, ostentador, individualista e segregador, como bem identifica Fernando Cesarotti em ótimo texto para a Vice Brasil.
Um Palmeiras que, na cerimônia de premiação do seu decacampeonato brasileiro, teve dentro de campo, entregando medalhas e vestindo camiseta de campanha, o deputado Major Olímpio, senador eleito em São Paulo pelo PSL de Bolsonaro e ferrenho defensor do fim das torcidas organizadas. Um Palmeiras que, fora do estádio, teve convidados legítimos expulsos da sua festa pelas bombas de despreparo de parte da Polícia Militar. Todas chanceladas pela omissão da diretoria do clube.
Se por um lado o Palmeiras de 2018 representa a fartura de bons jogadores que o permitiu focar na Libertadores, morrer na praia e ainda assim acabar campeão brasileiro, por outro representa o casamento do capital financeiro, na figura da “tia Leila”, com o autoritarismo, simbolizado pela imagem do bolsonarista Felipe Melo e de uma arena linda, moderna e pomposa, mas pouco inclusiva com seu plano de sócio-torcedor. A analogia é de Gabriel Lima, também colunista deste Futeboteco, durante papo com os demais integrantes do blog.
Nesse sentido, não é de se estranhar que o presidente palmeirense, Maurício Galiotte, se alinhe à dupla Jair Bolsonaro-Paulo Guedes. Não é de se estranhar que ele tenha decidido vincular a equipe ao futuro governo para ser aplaudido pelos milhões que elegeram o capitão de extrema direita. Como também não é de se estranhar que a CBF tente se aproximar de Bolsonaro, aliado do seu principal opositor, Mario Celso Petraglia, presidente do Conselho Deliberativo do Atlético-PR, time rubro-negro que chegou a entrar em campo neste Brasileirão com uma camisa amarela em apoio ao então candidato do PSL ao Planalto — ato que não foi aderido pelo zagueiro Paulo André, talvez o jogador mais politizado do Brasil e que será gestor do Furacão em 2019.
No fim das contas, o que mais dói é notar que essa subserviência ao presidente chamado de “mito” não parou no convite da diretoria, mas foi reforçada pelos atletas e comissão técnica no gramado com um festival de idolatria, selfies, gestos de armas de fogo e cotinências batidas para aquele que se tornou o dono de uma festa que obviamente não tinha esse intuito e deveria unir palmeirenses de todos os credos, cores, raças, ideologias, partidos e espectros políticos. Mas, para decepção ainda maior, a lambeção de botas veio, inclusive, de ídolos do tamanho de Felipão e São Marcos, o goleiro santo que deixou de apontar os dedos aos céus para, agora, usá-los em defesa de uma população armada. E faz isso ao lado de um político racista, homofóbico, misógino e que pisa na Declaração Universal dos Direitos Humanos (foto abaixo).
Para salvar a lavoura, só a visão de mundo crítica do cada vez mais ídolo Fernando Prass, que já se disse angustiado com a alienação da maioria dos jogadores brasileiros, e Willian do Bigode, autor do passe para o gol do deca, esforço que lhe renderá longo período de molho para se recuperar de uma grave lesão no joelho direito. Pai de uma criança com necessidades especiais, o atacante manteve a coerência e ignorou o presidente que ignora as minorias, ainda que a assessoria do atleta tenha tentado colocar panos quentes no fato e circule um vídeo dele sendo cumprimentando por Bolsonaro no vestiário, um outro contexto, me parece.
Prass também foi sóbrio ao receber a medalha do presidente eleito e se manteve distante dele em toda a festa, como relata Felipe Oliveira, colunista deste Futeboteco e repórter presente no gramado pela Voz do Esporte FM. O zagueiro Luan, que cresceu muito de produção nesta temporada, parece ter sido outro que se incomodou com o protagonismo do capitão de extrema direita na celebração.
Apesar de tanta coisa a se lamentar, é reconfortante perceber que ao menos três nomes importantes do farto elenco decacampeão concordam que conquistas dentro do campo deveriam ter o mesmo peso que o respeito à própria história. Esse é o lema que sigo. E foi criado pelo excelente Breiller Pires, colunista do El País e comentarista dos canais ESPN, em sua conta no Twitter: “Instituição acima de todos”. Lutemos por isso.