Não se brinca com a História
O Clube Atlético Paranaense foi fundado em 26 de março de 1924. Suas cores representam a fusão de duas agremiações curitibanas que deixaram de existir para dar vida ao finalista da Copa Sul-Americana 2018: o vermelho do alvirrubro América Futebol Clube e o preto do alvinegro International Foot-Ball Club. Decidiu-se, na mesma ocasião, que o lado esquerdo do brasão estamparia a sigla C.A.P. em letras góticas brancas e entrelaçadas. O escudo era quadradão e se parecia muito com o do Flamengo, inclusive com listras rubro-negras horizontais — e não verticais, como passaram a ser em 1990 e eram até ontem .
A partir dos anos 40, as letras ficaram mais grossas e se mantiveram dessa forma — de novo, até ontem. Quem criou essa fonte, presente na maior parte da história do Atléitco-PR, é um dos jogadores do clube naquela década, Ayrton Lolô Cornelsen, tricampeão paranaense seguido, duas vezes como amador (1943 e 44) e uma no time de cima (1945). Atualmente, é um senhor de 96 anos que também exerceu, ao longo da vida, as carreiras de arquiteto e engenheiro civil. E, mais do que dar forma aos traços da inscrição C.A.P., o próprio usava as mãos para pintar o emblema no peito de cada companheiro de equipe.
História fantástica e possivelmente única no futebol brasileiro! História que deveria ser preservada. E foi em todas as mudanças pelas quais o escudo havia passado até ontem. Inclusive na última, ocorrida em 1997, quando tornou-se redondo. O responsável por bancar essa versão é Mário Celso Petraglia, atual presidente do conselho deliberativo do Atlético-PR e também responsável pela perda da identidade de um clube que queria uma “mais moderna” — seja lá o que isso signifique.
Em 11 de dezembro de 2018, o Clube Atlético Paranaense passou a atender por Club Athletico Paranaense. Isso, exatamente desse jeito: com “bê mudo”, um “agá perdido” e sem acento agudo. Já a fonte desenhada por Lolô Cornelsen foi esquecida e deu lugar a uma sem o peso da História, mas supostamente “inovadora”, capaz de “alavancar a marca internacionalmente” e, o mais importante, “potencializar receitas”. O escudo, agora, é chamado de “logo” e desenhado com apenas quatro riscos na diagonal, que teriam o “conceito” de um furacão, apelido da equipe.
Aliás, aí há outra mudança: o mascote clássico (que já foi um cartola e um torcedor com boné para trás) envolto por um furacão foi trocado por uma família aleatória composta por quatro personagens futuristas e adivinhe… nenhuma referência a furacão! Exceto, lógico, por um cachorro cujo nome é Fura-Cão. Inacreditável, né? O uniforme também aboliu as listras verticais e, com quatro linhas ascendentes, segue a alusão à ventania devastadora.
Não tenho formação em design ou marketing e respeito o trabalho realizado pelos profissionais que elaboraram a nova identidade visual do agora Athletico Paranaense. Mas é preciso, igualmente, que os dirigentes do clube respeitem uma história de 94 anos. Ao decidir “atualizar” a imagem da equipe, Petraglia sequer cogitou discutir o assunto com seus torcedores? Ele não é dono do time, que também não é uma empresa.
Clube de futebol não lida com clientes, mas com torcedores. Lida com memória afetiva. A frieza empresarial é incompatível com a paixão fervorosa de quem torce. Clube de futebol não tem marca, tem história. E nada mais seu do que sua própria história. Avisem o Petraglia, por favor.
Eu não sou contra a evolução de nada. Com o tempo, tudo se desenvolve — e, óbvio, com o futebol não é diferente. A história do próprio Furacão mostra isso, como você, que chegou até aqui, acabou de ler. Sim, eu sei que citarão sempre o exemplo da Juventus. Não admito, porém, que esse processo não seja natural e aconteça apenas por motivações comerciais. E é o caso.
Por um instante acreditei que pudesse dar uma colher de chá para o Petraglia sobre a decisão de resgatar o nome de fundação da equipe. Mas a proposta, além de puro preciosismo, cai por terra quando se descobre que a ideia original do cartola era trocar o nome para Paranaense, como o time é conhecido no exterior (lembra-se da meta de “alavancar a marca internacionalmente”?). No entanto, por sorte, ele foi convencido do contrário pelos demais integrantes do conselho. Se não bastasse, o manda-chuva ainda justificou que o Atlético original é o Mineiro. E não descartava a alteração nas cores, o que seria o assassinato do que restou de tradição.
De fato, como é possível confiar na sensibilidade de quem decide acabar com a venda de ingressos para torcidas visitantes e proíbe, em seu estádio, a entrada de pessoas com qualquer objeto que faça referência a um adversário esportivo?
Como é possível confiar num cara que obriga seus atletas a entrarem em campo pedindo voto para um candidato à Presidência da República — movimento que aconteceu em partida deste Brasileirão e não foi aderido pelo zagueiro Paulo André, um dos idealizadores do extinto Bom Senso F.C.?
Como é possível confiar em quem apoia o presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL), um homem que, entre tantos absurdos, classifica a Declaração Universal dos Direitos Humanos como “esterco da vagabundagem”?
É isso que muitos entendem como ousadia? As ideias tidas como inovadoras parecem capaz de acertar ao proporcionar uma estrutura invejável, teto retrátil em sua bela arena, grama sintética e biometria nas catracas, mas, na mesma proporção, conseguem cometer ultrajes como os exemplificados nos parágrafos anteriores.
O que mais o torcedor do C.A.P. pode esperar? Troca do hino, outro símbolo que foi criado por seus jogadores e é raridade na história do nosso futebol (a letra foi escrita pelo goleador Zinder Lins após um bicampeonato invicto em 1930; a melodia foi composta 38 anos depois por Genésio Ramalho, que teve mais sorte na música erudita do que no futebol)?
Em seu perfil no Twitter, o jornalista e documentarista Paulo Silva Júnior, da Central 3, da Trivela e do saudoso Impedimento, ironizou ao indicar que o Furacão estava pronto para copiar uma famosa marca de roupas e tirar as vogais do nome, ficando apenas ATLTC. É brincadeira, mas é bom não duvidar da (in)capacidade de quem se arvora com a fama de vanguardista.
Ao menos hoje, em sua primeira final continental em casa — direito usurpado na decisão da Libertadores de 2005–, será possível pisar no gramado respeitando seus antepassados. Torço para que dê tempo de “alavancar a marca internacionalmente” ainda com os velhos manto, nome e escudo.
Que venha o Junior Barranquilla.
No canal do Futeboteco no YouTube, Felipe Oliveira também comentou o assunto. Assista: