Pelo direito de assistir à Copa – e torcer pelo Brasil
Os anfitriões russos já sacolaram os sauditas com uma série de pinturas na abertura da Copa do Mundo em Moscou; a Celeste Olímpica já deu aos seus torcedores uma vitória pulsante, por 1 a 0, como de costume com cabeçada certeira de um zagueiro nos minutos derradeiros (dessa vez, com Giménez, o companheiro de Godín no Uruguai e no Atletico de Madrid), em embate que não teve do outro lado o craque egípcio “Mo” Salah; Cristiano Ronaldo já salvou seu Portugal com um golaço de falta que empatou o clássico ibérico contra a Espanha (após ter balançado as redes outras duas vezes), na melhor partida desta edição até aqui; Messi já frustrou sua Argentina ao perder o pênalti que daria a vitória diante da Islândia — e me daria algumas posições nos bolões da firma e dos amigos da velha guarda; neste momento, o México, dirigido pelo ex-são-paulino Juan Carlos Osorio, vai destroçando os atuais campeões mundiais.
Chegamos, neste domingo, ao quarto dia de Mundial com a estreia do Brasil do professor Tite prestes a acontecer. Acordei vestido com minha máscara do Neymar do dia dos 7 a 1 (que é o mesmo do meu aniversário) e minha camisa da Copa de 70 promocional do Guaraná Antartica, com a estrela do meio descolando da malha, usada e surrada na Copa passada (foto abaixo).
E mais: tirei dez dias de férias, contados a partir de amanhã, para me locupletar com a maratona de jogos proporcionada pela fase de grupos. Tudo neste frio siberiano que atinge São Paulo e pede por coberta, cerveja, amendoim, talvez pipoca, e jogos da Copa, em vez de séries da Netflix.
Mas, acredite, há quem proteste contra essa festa. Os motivos são vários e vão desde o argumento futebolístico, sustentado pelo trauma ainda não superado dos 7 a 1, até a descrença com a política e os nossos governantes, “ainda mais em ano de eleições”, dirão uns, situação mais comum entre os inquisidores da Copa. Em meio a essa celeuma, há quem solte a frase célebre: “o futebol é o ópio do povo”. E eu concordo. Como concordo que, até aí, muita coisa pode ter essa função, como a religião, por exemplo. É necessário, porém, discernimento para saber lidar com os ópios da vida, e isso depende mais de você do que de mim, caro leitor.
Digo mais: serei ousado ao afirmar que o povo brasileiro, imerso numa profunda crise política e econômica, precisa dessa dose anestésica para sobreviver até as eleições, em outubro. Funciona como um respiro. Quase um sopro de vida. Também porque a esmagadora maioria dos especialistas ouvidos pela imprensa brasileira afirma que o resultado da Copa, seja qual for, não deve interferir no resultado das eleições presidenciais: o governo Temer já está morto há algum tempo, sem chance de reabilitação, ainda mais tendo o ex-ministro da Fazenda Henrique Meirelles (MDB) como seu defensor, e o deprimente deputado federal Jair Bolsonaro (PSC) não será favorecido por eventual hexacampeonato da seleção, o que, na atual conjuntura, é para ser comemorado. Leia mais sobre o tema AQUI e AQUI.
Aliás, somente em 1970 houve essa relação de forma significativa. Além do óbvio, que enxerga como no mínimo esquizofrênica a comparação de uma realidade de ditadura militar com a atual, é importante lembrar que, naquele ano, parte da esquerda driblou a patrulha (elemento também presente nesta Copa) e torceu como nunca para a seleção de Pelé, Tostão, Jairzinho, Gérson, Rivelino, Capita e cia. A parte da esquerda que bateu o pé foi aquela considerada “mais radical”. Mas sobre o assunto quem discorre infinitamente melhor do que eu é o mestre Juca Kfouri na Folha de S. Paulo de 5 de junho de 2014, em “Torcer ou não torcer“.
Deixo aqui, também, um trecho do depoimento do jornalista e escritor Nirlando Beirão publicado no último dia 2 pela Carta Capital: “Para alguém que torceu a favor em 1970, chancelar em 2018 a hipocrisia, a burrice e a vulgaridade que passaram a exalar da pátria em chuteiras é missão ironicamente mais dolorida que a da época da ditadura”, escreveu.
Por último, lembro de uma frase do ótimo jornalista Breiller Pires, da ESPN Brasil, em sua coluna de ontem no El País: “Futebol é o reflexo perfeito da sociedade. Repercute na política, na economia, na cultura, na religião, na memória afetiva e até na dinâmica dos relacionamentos amorosos. Mas, em essência, trata-se somente de um jogo de 11 contra 11. Torcer não implica necessariamente em abdicar de outras formas de viver”.
Por falar nisso, vejo amigos da esquerda adotando a postura de vestir uma camisa vermelha da seleção brasileira com a foice e o martelo comunistas ao lado do símbolo da finada CBD (ou de uma flâmula genérica), no lugar do agourento escudo da CBF. Ainda existe uma “versão comunista” do avatar da seleção no Facebook. Tudo isso para conseguir torcer pelo Brasil de Tite sem fazer menção ao verde e amarelo que pautou o vestuário dos manifestantes pró-impeachment de Dilma Rousseff durante o golpe parlamentar de 2016 (sim, respeito sua opinião, mas é assim que prefiro me referir a esse episódio histórico).
Ok, acho tudo legítimo. Mas pergunto: faz sentido atribuir a identidade da seleção do nosso País a uma determinada ideologia, movimento, concepção política, qualquer que seja (tanto dos paneleiros da direita como dos adeptos do “não vai ter Copa” da esquerda)? Acredito que não. Nesse sentido, me parece que mais do que nunca devemos usar o tradicional verde e amarelo para torcer pelo Brasil na Copa – e fica a gosto do freguês se com ou sem fita isolante preta sobre o escudo da CBF, como já fez meu amigo e colunista deste Futeboteco Rodolfo Gomes. Eu entendo quem alegue que existe um distanciamento natural entre alguns dos “europeus” da seleção e o torcedor brasileiro, o que prejudica muito a relação entre os dois. Assim como entendo quem fale em elitização do nosso futebol, escândalos de corrupção na CBF e na Fifa e/ou que Neymar não representa nada que vá além de um super craque na pretensa condição de ídolo máximo do time canarinho.
Mas confesso ser acometido por uma incurável preguiça quando percebo que boa parte desses protestos escorre pela vala do maniqueísmo que aflige o País desde as manifestações de junho de 2013. Acaba sendo só mais um capítulo do interminável “nós contra eles”, em que tudo é problematizado, desde o direito de torcer pelo Brasil na Copa até o de publicar foto da sua (eu) companheira (o) nas redes sociais no Dia dos Namorados, como observou atentamente esses dias meu amigo Haisem Abaki, apresentador do nosso Jornal Eldorado, da Rádio Eldorado (107,3 FM).
Segundo o regimento do pensamento binário, é impossível assistir ao Mundial organizado pela Fifa, torcer pela seleção da CBF (que, na verdade, não pertence à CBF) e, ao mesmo tempo, ser crítico com o que há no evento e fora dele. Isso sem falar que, evidentemente, assim como quem gosta de Copa pode estar por dentro do que acontece no País e no mundo e se importar com isso, aquele que grita contra não necessariamente está isento de ser um alienado.
No fim das contas, o que deveria ser valorizada é a capacidade da Copa do Mundo, do futebol, unir todos os brasileiros, de todas as classes sociais, numa só experiência, numa torcida heterogênea em suas características, mas homogênea em seus objetivos. Se dependesse de mim, a postura ideal do torcedor brasileiro na Copa seria simbolizada pelo Canarinho Pistola, o carismático mascote da seleção (para alguns, o único acerto da CBF em anos, desde a contratação de Adenor em junho de 2016): torce fervorosamente para sua equipe, mas permanece “putaço” com tudo.
Agora, depois de publicado este texto, vou encontrar amigos de infância para beber e torcer efusivamente pelo time de Neymar, Jesus, Coutinho, Willian e Tite, com direito a rojões, bandeiras, cornetas, vuvuzelas, línguas de sogra, tudo verde e amarelo, claro. Sugiro que faça o mesmo, a seu modo. E lembre-se: se beber, não dirija. Nos dois casos, torça para o Brasil sem moderação.