Enterrem meu coração no Centenário
Eduardo Galeano, um dos meus escritores preferidos, dizia que Obdulio Varela – o capitão da seleção uruguaia na Copa de 50 – amarrava a chuteira com as próprias veias.
Esse é o espírito do texto de hoje. Escrevi-o com o próprio sangue mais do que com a tinta da caneta.
Isso porque todo mundo que me conhece minimamente sabe que, apesar de ser paulistano, torço pro Uruguai como para meu próprio time; e quem me conhece um pouco mais, sabe que é um milagre meu coração ainda bater depois dessa batalha contra a Inglaterra.
Por isso, essas mal traçadas linhas não se pretendem uma análise futebolística. Não falarei sobre o bom time inglês e seu futuro promissor, não analisarei as falhas uruguaias e o perigoso recuo do segundo tempo. Não tenho condições psicológicas para tanto.
Na verdade, estou em completo êxtase. Êxtase pela camisa celeste, êxtase por Luisito Suárez e, sobretudo, êxtase por essa coisa maravilhosa, essa verdadeira metáfora da vida que se chama futebol. Portanto o que você lê aqui, leitor, é um relato apaixonado. Não um relato escrito por um jornalista, mas por um torcedor.
Você pode estar se perguntando de onde vem essa paixão toda. Pois me explico: não é à toa que abri com uma menção a Eduardo Galeano – o grande escritor uruguaio, autor de As veias abertas da América Latina. Sou professor de literatura desde os 18 anos. Os contos, os romances e os textos em geral; ao lado do futebol, do amor e da cerveja; sempre foram minhas maiores paixões. E foi no encontro dessas paixões que comecei a idolatrar as arquibancadas ainda mais.
Se você ainda não leu Futebol ao sol e à sombra, de autoria do mesmo Galeano, vá correndo à livraria mais próxima. Minha vontade, na verdade, era ter umas cem cópias desse livro para distribuí- no meio da rua. Afinal, foi lendo essa maravilha da arte e do pensamento humano que passei a amar ainda mais o Uruguai, o futebol e a própria vida. Trata-se, simplesmente da maior compilação de causos do esporte já produzida – e o que é mais importante: narrada com muita paixão e amor por um dos grandes escritores do século XX.
Cada vez que leio esse livro me emociono. Meus olhos se enchem d’água ao lembrar de histórias como a da Copa de 1930, quando a bandeira uruguaia foi estendida ao contrário e um time cheio de carteiros, ferroviários e funcionários públicos se sagrou campeão do mundo. Meu corpo se arrepia quando recordo o drama de Abdón Porte, zagueiro capitão do Nacional de Montevideo, que deu um tiro no próprio coração no meio do Estádio Centenário porque o técnico de seu time passou a braçadeira para outro atleta. Quase sou transportado a outro mundo quando penso no maior silêncio da história do Maracanã, provocado por El Carrasco Alcides Ghiggia.
São essas Histórias que fazem do futebol uma das coisas mais incríveis que o gênero humano é capaz de produzir. Somente nesse esporte abençoado pelos deuses um país com menos habitantes do que a Zona Leste de São Paulo pode se tornar bi-campeão do mundo, disputando com nações de capitalismo muito mais avançado, com muito mais recursos, etc.
Foi com tudo isso em mente que, há alguns anos atrás, juntei um dinheirinho suado e fui a Montevideo. E foi lá que a camisa celeste se tornou parte do meu corpo definitivamente.
A ocasião não podia ser mais propícia: Copa América de 2011. Um ano antes, o Uruguai tinha arrancado o quarto lugar da Copa do Mundo graças a uma vitória nos pênaltis contra Gana, com Suárez metendo a mão na bola em cima da linha e el Loco Abreu liquidando a fatura com uma cavadinha. Se aquele fatídico jogo já vai dar trabalho a meu cardiologista daqui a uns anos, mal sabia eu o que estava por vir.
O calvário começou nas semi-finais. Ainda estava no Brasil, e assisti o time de Forlán bater a Argentina em pleno Cemiterio de Elefantes, em um jogo em que o número de faltas bateu recordes. Novamente, a batalha terminou nos pênaltis, e quase fui às lágrimas nos telões da Vila Madalena.
A final, tive a oportunidade de ver em plena capital uruguaia. O que me marcou naquela tarde não foi o jogo fácil (finalmente um!) contra o Paraguai, mas sim a vibração daquele povo. A praça Independencia no centro da cidade foi completamente tomada por uma multidão azul. Todos cantavam, choravam, vibravam… Enfim: faziam tudo aquilo que faz o futebol valer à pena.
Eu, no meio disso tudo, fui parar no meio de uma torcida organizada do Peñarol, bêbado como um gambá. Gritei a noite inteira, acordei sem voz no dia seguinte e voltei para as ruas para comemorar mais. A multidão continuava lá com a mesma energia.
Desde então, torço para o Uruguai de maneira doentia. Aguardei a estreia com uma ansiedade de tirar o sono. No jogo contra a Costa Rica, enchi a geladeira, chamei amigos, estendi a bandeira celeste na churrasqueira mas, no fim, fiquei apreensivo. O Uruguai perdeu. Mas eu já sabia que não seria fácil.
Tinha que ser contra um gigante. Nosso craque tinha que jogar no sacrifício. Tinha que ser com um gol impedido. Tinha que ser na bacia das almas, tinha que ser sofrido.
Sobrevivi à guerra contra a Inglaterra por pouco. Mas cada minuto de angústia valeu à pena. O futebol é como a vida: ora estamos por baixo, ora por cima. Contudo, nunca desistimos e seguimos na luta. É como terminar um relacionamento e conhecer a mulher da sua vida no dia seguinte. Como diria o mesmo Galeano: “ganamos, perdimos – igual nos divertimos”.
A próxima batalha é contra a Itália. Estarei na Arena das Dunas, após gastar um terço do meu salário. E terei certeza que cada centavo terá sido bem gasto.
Porque não é à toa que José Trajano disse que chorou após o jogo de hoje no Itaquerão. Só quem ama o futebol sabe o que esses noventa minutos significaram. E acho que só quem torceu para o Uruguai sabe a emoção com que escrevo esse texto.
É por isso que peço: enterrem meu coração no Centenário, ao lado do coração do capitão Abdón Porte. Lá ele estará em casa.