Se a Fifa não é culpada, é cúmplice
Independente desde 1971, o Catar é uma potência em petróleo e gás natural (detentor de 15% de toda a reserva mundial do gás), localizado no oriente médio (entre a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos), com uma renda per capita que ultrapassa os US$ 80 mil por ano. O país é regido por uma monarquia constitucional. Isto é, diferentemente do que existe no Reino Unido, onde a figura da rainha é meramente simbólica, a família Al-Thani, sob a liderança do xeque Tamim Bin Hammad, ocupa praticamente todas as posições-chave na máquina estatal e tem plenos poderes em um país onde a democracia é manca.
Embora haja uma constituição desde 2005, que, no papel, garanta liberdades inerentes a um regime democrático (como as de expressão, voto e religião), a Sharia (Lei Islâmica) ainda exerce forte influência na legislação e costumes do país. Além disso, somente trinta cadeiras do parlamento são ocupadas via sufrágio. As outras 15 que compõem o poder são apontadas diretamente pelo xeque.
O Catar é um dos países do Oriente Médio que possui um pacto de defesa com os Estados Unidos. Além da aliança bélica, há a relação mercadológica dos dois países, que em 2005 assinaram uma fusão para construir a maior planta de exploração de gás natural liquefeito do mundo, no valor de US$ 14 bilhões, cujo principal importador seria os Estados Unidos.
Resumindo: é ideal para a Fifa, que, em 2010, escolheu o Catar para sediar a Copa do Mundo de 2022.
Há quase um ano, o secretário-geral da Fifa, Jérôme Valcke afirmou que “menos democracia às vezes é melhor para organizar uma Copa do Mundo”. Essa frase, dita sob o contexto de insatisfação com os atrasos das obras e da aprovação da Lei Geral da Copa no Brasil, evidência a responsabilidade do órgão máximo do futebol sobre as 1.200 mortes de operários no Catar, conforme denunciou o jornal Ás, da Espanha.
Não é de hoje que o Catar vem enfrentando graves denúncias sobre violações aos direitos humanos e civis, além daquelas referentes às leis trabalhistas que apontam condições análogas à escravidão nos postos de trabalho, especialmente para os operários estrangeiros. Com a escolha do país como sede da Copa do Mundo de 2022 (que, inclusive, está sob investigação de suborno), embora Joseph Blatter exima a entidade de qualquer responsabilidade, a Fifa acaba referendando os meios escusos que a nação tem para se alavancar. Ela é cúmplice do regime que a própria entidade prefere para ditar as regras do jogo. Mas o pacote é fechado: se não quer democracia, não exija direitos humanos.
Ela ainda faz pior. Afinal, os torcedores catarianos tinham três estádios para acompanhar a liga local (que é irrelevante para o futebol internacional). Agora, prestes a sediar o mundial, o país está sendo obrigado a levantar mais nove estádios, o que só agrava o cenário da construção civil do Catar. Daqui até o pontapé inicial dos jogos no Oriente Médio, o saldo pode chegar a 4.000 trabalhadores mortos, segundo a reportagem do Ás.
O Brasil, democrático como é (ou pelo menos tenta ser) também já teve sua cota de sangue derramada por causa da ineficiência de um governo pressionado pelas exigências da Fifa e que constrói estádios a toque de caixa, sustentados por bilhões em dinheiro público. Desde o início dos trabalhos foram seis acidentes fatais em Manaus, Brasília e São Paulo, todos com acusação de violações das nossas leis trabalhistas.
Colocando-nos pouco a frente do tempo, as últimas três Copas do Mundo da Fifa (contando o fracasso antecipado do Catar) foram um fiasco. A África do Sul amarga até hoje com seu caixa esvaziado, legado zero e elefantes brancos. Assim como o Brasil que não verá o fim da Copa após alguém levantar a taça, com tantas dividas que ainda terá de arcar depois dos jogos. E o Catar já empilha os corpos dos operários enquanto abre espaço para os que ainda virão.
Já está na hora de a Fifa parar de comemorar o desempenho lucrativo de suas receitas (que fecharam 2013 com US$ 72 milhões positivos) para repensar a maneira de promover a Copa do Mundo. São rios e rios de dinheiro público e ataques às soberanias nacionais para organizar um evento milionário que é cada vez menos benéfico para a sociedade e mais rentável aos cofres privados.