Reis, Profetas e Nenês
Maquiavel, o maior gênio da história da ciência política, dizia que o Príncipe italiano precisava ser amado. E que, se não fosse amado, precisaria ser temido.
Raí está acima do príncipe na hierarquia real: é o Rei do Morumbi, como a torcida são-paulina gostava de cantar nos anos 90, pra rimar com seu nome.
Tão mais grave, portanto, é o fato de que ele não seja nem amado, nem temido.
O atual diretor de futebol são-paulino bem tentou cair nas graças dos súditos ao atender o pedido da Torcida Independente por Diego Souza. Cometeu, porém, um erro grave para um governante: confundir a vontade de uma facção com a vontade do povo. Assim, criou um problema pra Dorival Júnior, que salvara o time da série B e havia pedido pontas rápidos.
O trabalho já começava mal. À lentidão do veterano meia, forçado à posição de centroavante improvisado, se somou Tréllez, contratado por mais de 10 milhões. Era muito dinheiro investido para deixar os dois no banco. Dorival não soube descascar o abacaxi e viu sua cabeça rolar nem começado o brasileiro.
Teve início, então, a surpreendente Era Aguirre. Com o que tinha em mãos, o uruguaio armou uma defesa sólida e conseguiu transmitir aos jogadores – entre os quais o próprio Diego Souza – algum senso de entrega ao clube. Meio aos trancos e barrancos, a liderança da série A, conquistada depois de muito tempo, recoroava o Rei Raí.
Foi quando começaram os motins. Rodrigo Caio, que acha por bem mandar retirar o cartão amarelo do adversário, voltou de contusão e precisou ser escalado. A fortaleza tricolor, edificada a duras penas, começou a ruir.
Percebendo o problema, Aguirre barrou o jovem zagueiro. Em seguida, porém, enfrentou a oposição de Nenê, que minou o vestiário. Ao decapitar seu técnico pra satisfazer os bebês, Raí, que àquela altura já não era amado, perdeu a chance de ser temido.
Assim, o São Paulo se tornou refém de jogadores veteranos, como Nenê e seu salto alto, ou Diego Souza (que não reclama do banco, mas entra no segundo tempo até quando o time não precisa). Enquanto isso, a diretoria reza para que Tréllez seja comprado pelo Inter para compensar o dinheiro pessimamente investido.
Quando os reis falham, entram em cena os profetas. Hoje, a única esperança do são-paulino é um lampejo de Hernanes. Caso o meia não consiga abrir o mar vermelho e conduzir o seu time à terra prometida da Libertadores, o que resta é um cenário de terror:
Jucilei, pesadíssimo, deixa a cabeça de área desprotegida nos dois gols do Talleres. Hudson, sobrecarregado, é expulso por excesso de faltas. O auto-escalável Nenê, pra quem Jardine inventou uma ponta esquerda, se mostra inoperante. Os laterais, entre os quais Kingnaldo, deixam verdadeiras avenidas pro adversário. E diante da bagunça, os ótimos Pablo e Éverton correm em vão.
Não se trata, portanto, de pessimismo: a possibilidade de ser jantado pelos Talleres na própria casa, sair debaixo de uma vaia de 50 mil pessoas e ir enfrentar o Corinthians em frangalhos é mais do que concreta.
Novidade, naturalmente, não seria. Não para um time que se acostumou a ser eliminado por Defensa y Justicia’s, pra não falar das humilhações cruelmente impostas pelos rivais perto das quais o último nó tático de Sampaoli foi fichinha.
Por isso, seja lá o que aconteça na semana que vem, devemos nos perguntar: como o São Paulo chegou a esse ponto?
Creio que a resposta é complexa. A lição da Revolução Francesa é que, quando os Reis não funcionam, a solução é a guilhotina (metaforicamente entendida, claro!). Não penso, contudo, que tirar o já fracassado Raí ou o perdido Jardine vá resolver o problema. O senso comum do torcedor muitas vezes supera a obtusidade dos jornalistas de rabo preso: o problema é quem colocou eles lá.
Essa semana, um texto de Alexandre Lozetti demonstrou a esculhambação do aeroleco – o esquema de venda de favores, que inclui vinhos argentinos e passagens aéreas gratuitas, usado pelo atual presidente do São Paulo pra comprar sua oposição (pra não falar de figuras acusadas de corrupção ainda na gestão Aidar).
É apenas o sinal de que os cardeais tricolores já bateram no teto.
Dizem, por exemplo, que é preciso ter calma com Jardine. Ora, como ter calma se o time vai caçar níquel na Flórida Cup mal começado o ano, pra depois jogar uma pré-Libertadores em Fevereiro e enfrentar clássicos que a torcida não aguenta mais perder?
Hoje, quem assume o São Paulo, vem pra trocar o pneu com o carro andando. E isso é culpa de Leco.
A diretoria conseguiu criar uma espiral descendente de fracassos que elevou a impaciência da torcida a níveis sem precedentes. Não há jogador ou técnico que consiga trabalhar com a cadeira elétrica sempre à espreita.
O descalabro, claro, passa pelos já mencionados desmandos de Raí. Mas aí voltamos ao presidente que tenta usar ídolos como testa de ferro (Rogério Ceni sabe bem a que me refiro).
Por isso, pra encerrar, quero sugerir algumas saídas pro São Paulo, demonstrando que o clube não pode adotar nenhuma delas enquanto Leco e sua corja de opositores domesticados mandarem no Morumbi.
Tenho desenvolvido, nos botecos por aí afora, uma teoria de que o futebol se faz de ciclos virtuosos ou viciosos. Exemplo: o próprio São Paulo de 2005 a e 2008. O time ganhava títulos, deixava sua torcida tranquila, criava um ambiente ideal de trabalho, o que trazia mais títulos e assim por diante. Jogadores iam e vinham, mas até com Hugo e Borges no ataque o time levava o brasileiro. Eis um exemplo de ciclo virtuoso.
O exemplo oposto é o São Paulo de hoje, em que o ambiente viciado de impaciência e incompetência generalizada fritam qualquer um que seja contratado.
Pois bem, como se passa da fase ruim para a boa? Depois do tricolor, cada time paulista ensejou uma rota diferente. O Corinthians, por exemplo, saiu das trevas da série B para o topo do mundo em meio a um pacto com sua torcida, forjado em uma complexa engenharia de marketing popular brilhantemente concebida por Andréz Sánchez. O timão maloqueiro, sofredor e raçudo empatou com Boca em plena Bombonera com gol de Romarinho.
Já o Santos superou o pós-Robinho ao sacar Neymar e Ganso de sua máquina praieira de fazer jovens-craques. Por fim, o Palmeiras aguentou dois descensos para se abrir a uma enxurrada de dinheiro com a nova Arena e a injeção financeira da Crefisa.
Esses três caminhos estão fechados ao São Paulo de Leco.
Como se sabe, os cardeais do Morumbi nutrem total desprezo pela população pobre que constitui a esmagadora maioria da torcida são-paulina. Alimentam a soberba do apelido “Soberano” e gostam de dizer que seus jogadores têm todos os dentes na boca (como bostejou Carlos Miguel Aidar em um dos momentos mais vergonhosos da história do clube). Também por isso, nunca fazem o feijão-com-arroz: preferem técnicos supostamente visionários, como Osorio, Rogério e a bizarra invenção Jardine/Mancini. Mal merecem a maravilhosa massa desorganizada e popular de tricolores que abraçou o time quase rebaixado quando o ingresso foi a dez reais.
Não há, portanto, “via corintiana” para o São Paulo. Nem santista: Leco acaba de vender para a Europa o bom zagueiro Tuta, campeão da Copinha, que nem estreou entre os profissionais. O que seria do tricolor se ainda tivesse David Neres, Militão e Luiz Araújo? Jamais saberemos.
Resta, então, a saída palmeirense, que parece muito mais difícil diante da impossibilidade de converter o Morumbi em Arena. Bem seria possível se vender a um investidor, o que parece a típica atitude da diretoria são-paulina. Mas diante da elitização e submissão a terceiros que essa opção impõe, pessoalmente, acho uma péssima ideia.
Sendo assim, o que fazer?
Não sei. Resta esperar um milagre ou o fim da atual gestão. Se bem que, com seus possíveis sucessores confortavelmente instalados no aeroleco, a perspectiva de mudança é mínima…