Tudo é possível
Assim como o músico santista Kiko Zambianchi queria poder levar uma paixão antiga e com ela fazer o que bem pensar, demorasse o tempo que fosse preciso, o Atlético Mineiro queria como ninguém conquistar a Libertadores para presentear a torcida que tanto sonhou com ela.
Mesmo que para isso não tivesse mais o Horto e a missão fosse tida como impossível. Mesmo que para isso precisasse novamente reverter uma diferença de dois gols. Mesmo que, novamente, o segundo saísse poucos minutos antes do apito final. Mesmo que precisasse vencer a segunda disputa de pênaltis seguida. A terceira se contar com a penalidade que virou morte-súbita e Victor defendeu – só pode – por intermédio de alguma força divina, aos 49 minutos da etapa final do jogo decisivo das quartas, contra o mexicano Tijuana.
Mesmo que o atleticano, e tantos outros brasileiros de outras cores que vestiram preto e branco na quarta, precisasse voltar a infartar de tanta emoção. Mesmo que Cuca precisasse representar, com todo descontrole emocional que lhe é peculiar, uma Libertadores que, como as mais belas, poderia ser resumida pelo superlativo inexistente do adjetivo “emocionante”.
Emoção que, aliás, não faltou a um alguém que é santista como Kiko, mas, nascido em Muzambinho, interior de Minas Gerais, tem a segunda metade do coração habitada por outro alvinegro, “o galo mais lindo do mundo”, como ele próprio apelidou. Milton Neves estava prestes a abrir um buraco no chão tantas eram as voltas que repetia no mesmo metro quadrado, do lado de fora do estúdio da Rádio Bandeirantes.
Faltando pouco mais de cinco minutos para o término do segundo tempo da prorrogação, fui incumbido de produzir o comentário que o santista mais atleticano do Brasil grava semanalmente para o telejornal cujo âncora é Boris Casoy.
Com a pauta numa mão, o microfone noutra, e seguido pelo cinegrafista Evlin Keka, subi as escadas que terminam na rádio, onde conversei com o atencioso Sergio Patrick. Ele comentava ao vivo a finalíssima e, “em off”, me alertou sobre a tensão de Milton. Resolvi, então, aguardar. Principalmente porque precisava falar pro apresentador uma palavra que nenhum atleticano queria pensar naquele momento – quanto mais ouvir: derrota.
Como o comentário entraria logo no primeiro bloco do Jornal da Noite, na sequência da partida, transmitida em tevê aberta apenas pela Globo, ele precisava ser feito antes do desfecho da decisão. Minha missão, portanto, era pedir ao Milton que gravasse duas versões: uma do Atlético-MG campeão e outra na qual o vencedor fosse o Olimpia, sem, claro, entrar em detalhes de como os possíveis títulos aconteceram.
Na companhia de Sergio e Evlin, assisti cerca de dois minutos da prorrogação esperando que neste tempo o apresentador retornasse ao estúdio. O que não aconteceu. Só me restou tomar coragem e ir até Milton. Apesar de agoniado, ele topou minha proposta sem resisti-la. Antes, porém, esperou pela conclusão de uma falta a favor do Galo que terminou longe do gol de Martin Silva.
Milton, enfim, gravou as duas versões. Com bom humor que mais servia para disfarçar o nervosismo, ele ainda pediu total atenção na edição do material, pois, do contrário, “pagaria o maior mico da carreira”.
Mas não pagou. Porque naquela noite era impossível um atleticano pagar. A noite, afinal, era do Atlético. Do Atlético campeão da Libertadores. Estava escrito, como muito se falou e o Galo cantou na manhã seguinte. Ou, se não estava, os alvinegros de Minas tornaram possível o impossível.
Primeiro por meio do iluminado Leonardo Silva, que atua na defesa mas muito bem poderia ser o centroavante da equipe, tantos são os gols que assina. Mestre na arte de encobrir de cabeça, por duas vezes quase tirou da garganta do atleticano o grito de gol que estava engasgado. Na terceira, conseguiu. E o Mineirão pulsou como nunca havia pulsado antes da reforma.
Depois do zagueiro-artilheiro, eis que surge de novo, outra vez, novamente, em uma decisão na marca da cal, São Victor do Independência, que operou tantos milagres quanto São Marcos de Palestra Itália, em 1999.
O herói de uma conquista que ainda teve o capitão Réver levantando a taça; Cuca afastando a “zica” com Nossa Senhora Aparecida no peito; o amuleto Guilherme saindo do banco de reservas para decidir; os malabaristas Ronaldinho Gaúcho e Bernard dando show e os guerreiros Pierre, Josué, Leandro Donizete e Richarlyson, o sangue.
E também não há como questionar esse título.
O Atlético simplesmente fez a melhor campanha da primeira fase. Fez mais gols que qualquer outro time em toda a competição. Teve em Jô e Diego Tardelli o artilheiro e vice dela. Encarou quatro confrontos com o São Paulo, que, se não é o de antes, é clube brasileiro e tem toda a experiência que o Galo não tinha no certame. Em seguida, passou pelo atual campeão mexicano. Pelo atual campeão argentino e um dos melhores da América. Na decisão, superou o campeão paraguaio, que brigava pelo quarto caneco enquanto os mineiros tentavam ainda o primeiro.
Após passar por duas provações e ser alçado à condição de virtual campeão, ninguém imaginaria que o Atlético tropeçaria como tropeçou em Assunção e, muito menos, que passaria pela terceira. Mas passou. E provou que é tão grande quanto o próprio complexo de vira-lata.
Mais do que isso: provou que vale a pena acreditar.
Também porque, antes disso, Kiko Zambianchi já havia cantado a bola de que tudo é possível.
Ao vivo para o “MPB Café Eldorado”, Kiko Zambianchi canta “Tudo é possível” no Bar Brahma Aeroclube, em São Paulo, na noite de 14 de agosto de 2009.