As chuteiras abertas da América-Latina: Lutar pela própria História
Talvez por nunca ter ganho uma Libertadores em sua história, o San Lorenzo de Almagro é um clube pouco falado fora da Argentina.
Acontece que, além de uma grande tradição nacional, El Ciclón (como é conhecido) tem uma torcida pra lá de apaixonada. Torcida essa que deveria servir de exemplo a todo o mundo.
Digo isso porque, semana passada, Buenos Aires parou. Parou como se tivesse sido atingida por um ciclone.
Na ocasião, mais de 15 mil pessoas marcharam em direção à câmara legislativa da cidade, bloqueando trânsito e tudo mais o que estivesse no caminho.
Era a torcida do San Lorenzo.
E a manifestação não era uma festa, uma comemoração de um título. Era um ato político.
Um ato que tinha a ver, ao mesmo tempo, com a História do clube e com a tenebrosa História da ditadura militar argentina. Porque ambas se cruzam, quando pensamos no atual estádio do Ciclón: o Nuevo Gasometro.
Sim, o estádio não é chamado de “nuevo” (novo) à toa. Houve um tempo em que existiu um Viejo (velho) Gasometro.
Acontece que, durante o “governo” do ditador Jorge Videla – um dos mais sangrentos da América Latina – o antigo estádio de Almagro deixou de existir.
Sobre o pretexto de construir moradias populares, Videla decretou a demolição da arena, conhecida como El Wembley Porteño.
Meses depois, ao invés de casas, um supermercado Carrefour foi erguido no local.
Onde havia um gramado histórico, palco do Sul-Americano de 29 e de jogos épicos, foram colocadas prateleiras e caixas.
Só que a memória do Viejo Gasometro nunca deixou de existir. Tanto é que, em uma de suas andanças cotidianas, o escritor argentino Osvaldo Soriano achou, no supermercado, o ex-atacante Sanfilippo, artilheiro nacional de 1958 a 61.
E segundo Soriano, assim se deu o encontro: “Fui com José Sanfilippo, o herói da minha infância. (…) De repente, quando nos aproximamos das caixas, Sanfilippo abre os braços e me diz: ‘E pensar que bem dali meti um gol de bate-pronto no Roma, naquela partida contra o Boca’ (…) De repente corre como um coelho apesar do terno azul e dos sapatos lustrosos: ‘deixei-a quicar e plum!’. Dispara com a esquerda. Nos viramos todos para olhar na direção da caixa, onde há trinta e tantos anos estava o gol, e parece a todos nós que a bola entra por cima, justamente onde estão as pilhas para rádio e as lâminas de barbear. Sanfilippo levanta os braços para festejar. Os fregueses e as caixas quase arrebentam as mãos de tanto aplaudir. Quase comecei a chorar.”
Emocionante, a história revela, ao mesmo tempo, o amor da torcida do Ciclón pelo velho estádio, e a crueldade que foi a demolição do mesmo.
Talvez por isso, a mesma torcida que aplaudiu Nene Sanfilippo na década de 60, decidiu ir às ruas exigir a acatação do projeto de lei do deputado Gonzalo Ruanova, que propõe a devolução do antigo terreno ao San Lorenzo, e o repasse do terreno do Nuevo Gasometro ao governo.
Sem dúvida, uma alternativa mais do que razoável, dada a aversão que os próprios torcedores do clube tem pelo seu atual estádio e por tudo o que ele representa.
Só que claro, como sempre, resta aguardar o desenrolar dos fatos. Mas os “hínchas” do Ciclón fizeram sua parte. E que sirva de exemplo ao mundo inteiro.
Veja o vídeo da manifestação: