Devolvam meu São Paulo!
Este é um daqueles textos que, desde o começo, têm o dever de alertar o leitor sobre seu caráter parcial. Pois, como demonstra o título, tratam-se de parágrafos escritos por um torcedor. E o que é pior: um torcedor fanático, apostólico romano, calejado por toda uma vida de amor à camisa. Alguém que cresceu comendo os sanduíches de pernil da avenida Jorge João Saad; alguém que já assistiu a um jogo com água até os joelhos na época em que as chuvas alagavam as arquibancadas do Morumbi.
Por outro lado, esse triste autor são-paulino não gostaria de dar a você, leitor, o desprazer de uma daquelas crônicas emocionais, escritas em momentos de desespero, que os jornalistas costumam arrancar do baú de seus corações quando são levados à zona de rebaixamento. Não. Esse lamento analítico, escrito em situação dramática, pretende dizer alguma coisa – não apenas a título de desabafo. Isso porque seu autor crê que, mais do que o fim de uma utopia clubista, o momento atual do São Paulo Futebol Clube representa um exemplo (negativo) para todo o futebol brasileiro.
Entender como o tricolor paulista adentrou o atual pântano em que se encontra é entender como uma instituição hegemônica, multicampeã e perfeitamente administrada, com as pretensões de crescimento mais megalomaníacas do continente, foi levada à total irrelevância. Guardadas as devidas proporções, algo assim como se a Google decretasse falência daqui a dez anos. Parece impossível? Sim, mas foi o que nos aconteceu.
Em 2008 o são-paulino comemorou o ano novo como hexacampeão brasileiro, mal tendo descansado do tricampeonato mundial. Três nacionais, uma Libertadores e o topo do mundo, sem contar um paulistinha: tudo isso em quatro anos. Em curta escala de tempo, uma façanha que nenhum outro clube do país igualou. Era histórico: o São Paulo tinha o maior número de títulos em todos os campeonatos importantes. Além disso, tinha o maior estádio particular do Brasil, o maior goleiro artilheiro da história da humanidade, a torcida que mais crescia no país, patrocínios robustos e uma saúde financeira impecável. O torcedor sonhava alto: continuando assim, o clube rumava para se tornar o Bayern de Munich brasileiro.
Otimismo à parte, no entanto, um monstrinho já começava a crescer nos bastidores do Morumbi. Como em Brasília, ele parecia pequeno e controlado, sem ninguém imaginar o que poderia vir a causar quando se tornasse um monstrengo: era a crise política. Lembremos:
Em 2006, quando Marcelo Portugal Gouveia deixou a presidência do clube, pôs fim a um período de calmaria que faria inveja a um país escandinavo. O advogado unificava como ninguém as tendências conflitantes da cartolagem e era respaldado pelos incontestáveis resultados dentro das quatro linhas. Sua administração não encontrava oposição: fizera o simples e conquistara o planeta. Com gastos módicos, superou uma eliminação sofrida (2004), fez apostas cirúrgicas, trouxe jogadores bons e baratos e realizou o sonho de Mustafá Contursi. Basta lembrar que, dos ídolos tricolores do período, nenhum chegou a peso de ouro: Kaká veio da base, Luís Fabiano da Ponte Preta, Cicinho do então modesto Atlético Mineiro, Lugano do desacreditado Nacional do Uruguai, Mineiro do São Caetano, sem falar em um punhado de nomes pouco conhecidos que Cuca trouxe do Goiás, dentre os quais se descobriram os titularíssimos Fabão, Danilo e Josué.
Assim, as contas em dia, a unidade dos poderosos nos bastidores, a humildade geral do elenco e o respaldo dado aos técnicos faziam o clube parecer imune a crises, a despeito da impaciência de sua torcida que já atirara pipocas em alguns de seus melhores atletas. Não haviam picuinhas, brigas em torno de salários ou casos estapafúrdios vazados para a imprensa. Tudo funcionava como um relógio, cujo tic-tac tranquilo propiciava o ambiente adequado para que as soluções dos problemas fossem encontradas. Mesmo quando o São Paulo perdeu seu técnico em pleno mata-mata continental, fez duas apostas muito incertas: Autuori e Amoroso – e as duas deram muito certo.
Mas essa fórmula não apenas foi esquecida (ou abandonada) pelo tricolor, como pelo esporte nacional em geral. O Santos consagrado em 2011, por exemplo, tinha um corpo sólido, formado a partir de sua base, mas tinha também o fenômeno de marketing Neymar, que decapitou Dorival Júnior no meio do campeonato. As finanças do alvinegro praiano também eram incertas a longo prazo: dependiam, em parte, do marketing em torno do jovem atacante (o que, por sua vez, explica a saída de Dorival). Era um estranho ponto fora da curva, jamais igualado em nenhum sentido.
O Corinthians de 2012 tampouco era um clube parcimonioso. Saíra das trevas da série B para a Libertadores graças ao caudilhismo de Andrés Sánchez, que transitava como poucos nos meios sombrios de uma CBF já decrépita. Contudo, nem por isso deixava de enfrentar fortes conflitos internos, como demonstrou a turbulenta eleição de Mário Gobbi. Já o sucesso comercial da marca, creditado às estratégias modernas de figuras como Rosenberg, tapara com vigor o buraco deixado pela MSI, mas era um fenômeno recente. Além do mais avalizava um certo desvario nos gatos em jogadores como Sheik e Guerrero, também por tentar suprir o vazio deixado no coração corintiano pela saída de Tévez.
Já o Atlético de 2013 foi, talvez, o maior contra-exemplo do que preconizou Marcelo Portugal Gouveia. Com Kalil no comando, o Galo botou pra funcionar um volume de investimentos sem precedentes em sua história, unificando a política do clube em torno de um projeto faraônico, com ares de descontrole – mas que deu certo em campo. O twitter do seu presidente, hoje prefeito de Belo Horizonte, era símbolo daquilo que havia de mais contrário ao estilo low-profile dos são-paulinos de 2005. Claro que a prorrogação contra o Olímpia poderia ter mudado o rumo dessa história, como tantas outras bolas defendidas por São Victor. Mas disso ninguém se lembra.
Processo similar viverá o Palmeiras de 2017, se consagrado campeão de algo, agora com seus mitos alexandrinos e seus cofres turbinados pela Crefisa após um longo e tenebroso inverno. De fato, se pensarmos bem, o único caso recente de clube financeiramente são, politicamente equilibrado e futebolisticamente campeão, foi justamente o que derrubou aquele São Paulo de outrora.
Estamos falando do Inter de 2006: jogadores da base, investimentos controlados, políticos insuspeitos e assim por diante. Desde aquela final de Libertadores, o tricolor vice-campeão não foi o mesmo. Marcelo se foi, dando lugar a um Juvenal Juvêncio que assumiu com ares de Tancredo Neves – isto é, com o intuito de impedir o que se imaginava um caos e garantir uma transição pacífica. Conseguiu: era uma raposa das mais velhas. Mas a paz cobrou um preço. JJ se notabilizou por agradar o conselho deliberativo das formas mais inusitadas, com direito a episódios pitorescos, como a festa de inauguração de um elevador que contou com churrasco gratuito para todos os associados. Aos poucos, grupos importantes, como o de Marco Aurélio Cunha – ex-diretor de futebol e então deputado pelo DEM – começaram a se deslocar para uma oposição, percebendo que a situação era frágil. Mas o clube não se democratizara e os velhos dirigentes, cujos sobrenomes são os mesmos desde os tempos de Laudo Natel, se entrincheiraram.
Enquanto Muricy segurou as pontas em campo, tudo certo. Mas aos poucos, JJ se viu empurrado para uma velha tacada da política. Pressionado pela polarização cada vez mais forte, foi obrigado a fechar o regime, deu um golpe no estatuto e conseguiu se reeleger. Era isso ou era a crise de 2016 antecipada, afinal, só o sucessor natural de Marcelo Portugal Gouveia era capaz de acalmar os ânimos.
Claro que o remédio tinha prazo de validade: Juvenal também se foi e não havia ninguém para seu lugar. Agora, com os documentos bizarramente alterados, tudo ficava mais difícil. Em campo, a coisa também degringolava. O bom e barato de outrora fora para a lata de lixo da História. Com os restos do passado glorioso, um futebol de chuveirinho conquistou o brasileirão de 2008, mas nada fez no ano seguinte. A nova tática era buscar os holofotes: o Imperador Adriano e seus escândalos anunciavam uma era de contratações caras e midiáticas – cortinas de fumaça para o desmoronamento institucional do clube.
Aos poucos, os desmandos também corroeram a única coisa que parecia intocável: o dinheiro. Mas enquanto a dívida crescia, o São Paulo não apenas perdeu aquilo que lhe fazia campeão, como foi categoricamente atropelado pela História. Palmeiras e Corinthians entraram finalmente na era das Arenas e do marketing agressivo, mesmo vindos de rebaixamentos. Hoje, um jogo médio no Allianz Park rende muito mais do que um Morumbi lotado – para não falar na discrepância que a desigualdade gera em termos de patrocínio. E embora a torcida tricolor siga crescendo na adversidade, não encontra uma estrutura que otimize o giro de seu capital a ponto de permitir concorrência com os rivais. Nos shoppings, o tricampeão mundial não tem lojinhas de badulaques tão legais quanto a ShopTimão. Tampouco há para o são-paulino um modelo de sócio-torcedor sequer comparável ao Avanti.
Assim, preso ao passado e agora enfrentando também a concorrência do gigante Flamengo, o São Paulo perdeu o posto de time modelo, se somando a gaúchos e mineiros em um rol de segundo escalão. Mas seria pouco se fosse só isso. Com o passar do tempo, os rachas políticos também se traduziram em confusões as mais diversas. Primeiro, Ney Franco foi demitido por Rogério Ceni, após não escalar Cícero – aliás contratado assim que o ex-goleiro se tornou treinador. Ney Franco, lembre-se, conquistara o único título recente do clube, depois que seu rival na finalíssima fugiu de campo, acusando os seguranças do Morumbi de agressões. Mesmo antes disso, um time inoperante de bad boys – entre os quais Carlos Alberto e Fábio Santos – alegrou as páginas modorrentas dos jornais com brigas que tinham de xingamentos a cinzeiros voadores. Por traz das cortinas, dirigentes se dividiam, apoiando os diferentes lados dessas e outras brigas.
Nesse sentido, a bizarra gestão de Carlos Miguel Aidar foi apenas o ponto culminante de um processo de putrefação que se iniciou há algum tempo. Quando assumiu com aparência de situação, ninguém imaginava que o presidente faria o que fez. Pois, com a casa totalmente bagunçada, Aidar deitou e rolou, distribuiu cargos, remunerou por comissões, enriqueceu amigos e mamou até no patrocínio da Under Armour. E como de costume, a faxina tirou só o que estava à vista, empurrando o resto pra debaixo do tapete. Uma Lava-Jato do Morumbi, hoje, certamente revelaria dados ainda desconhecidos porém não menos absurdos, como as contas de um cabelereiro do clube que em um mês faturou valor equivalente aos dividendos mensais de uma consultora financeira. Nada disso vem à tona, porém, em parte pelo fato de que muitos dos amigos de Aidar continuam no conselho deliberativo tricolor, firmes e fortes.
Claro que no futebol, isso não poderia deixar de ter seu impacto. Aidar também conseguiu destruir a relação da política institucional são-paulina com a gerência do futebol, vide o soco que recebeu de Ataíde Gil Guerreiro. Umas das reclamações que se ouvem hoje no clube é a de que o futebol nunca foi tão distante do resto, já que os cartolas estão mais preocupados com suas próprias intrigas.
Foi esse o cenário que Leco encontrou quando foi alçado à presidência, fazendo as vezes de Michel Temer. Como o golpista, o novo mandatário é uma figurinha carimbada, bem relacionada, de longa trajetória dentro do clube. É o alarme de incêndio acionado quando o fogo se alastra. Nesse sentido, chegou pra pôr panos quentes na crise e o fez razoavelmente bem: minguou a possível oposição distribuindo cargos, afastou do horizonte os aventureiros (como Abílio Diniz) e criou uma série de testas-de-ferro. No entanto, um dos problemas desse tipo de administração é que, a depender do tamanho da crise, a prioridade do presidente pode ser salvar a própria cabeça. Aqui, valem todas as comparações com a situação brasileira geral.
Hoje, tudo que Leco quer é se manter no cargo, enquanto o são-paulino espera que as próximas eleições anunciem alguma coisa – o que, por sua vez, não acontecerá, já que o presidente faz um governo de manutenção, sem ver surgir muitas vozes dissonantes. Rogério Ceni foi uma peça nesse xadrez. Infelizmente, viu o cavalo de suas ambições passar selado em sua frente, em um momento em que ainda não tinha preparo, mas em que era, também, o único capaz de unificar o unificável. Quando o M1T0 foi apresentado, torcida, oposição, conselheiros individualistas, Leco e todo o São Paulo eram uma coisa só – todos torcendo para o sucesso do ídolo. Mas seria inocência pensar que os problemas não surgiriam.
Diz-se que o auxiliar Pintado, já demitido, boicotava o técnico e fez o apelido de “chato” pegar entre os jogadores. Não era o único: já desde a derrota para o Corinthians, mais de um conselheiro pedia a cabeça do treinador. Há ainda boatos de que Pintado vazou episódios para a imprensa, como o chute que Rogério deu em uma prancheta que foi parar em… Cícero. Fala-se, também, que profissionais da preparação física tiveram problemas com atletas, como Cueva que recentemente protagonizou o “caso do spray”. Verdade ou não, o São Paulo hoje sofre com lesões, vide a do próprio Cueva que não voltou a jogar bem desde que se machucou em Abril.
Enquanto isso, a pouca estabilidade política que Leco edificou vai se desafazendo na medida em que figuras ditas são-paulinas protagonizam acontecimentos dignos de um clube de várzea – como o episódio bisonho em que o virtual candidato da oposição “Newton do chapéu” tentou dar o bote no atual presidente disseminando uma notícia falsa em seu facebook. As rixas proliferam para todos os lados.
Obviamente, esse estado de descalabro total se reflete em campo. Eis porque já faz alguns anos que o São Paulo toca bem a bola e chega mesmo a dominar os jogos sem conseguir vencer. Em toda partida do tricolor que assisto com meu sogro, o vejo repetir a frase: jogamos como nunca, perdemos como sempre. Nesse sentido, os dados que Rogério apresentava em suas coletivas não eram falsos: o São Paulo vem tendo bom volume de jogo e posse de bola. Mas, por outro lado, perde muitos gols e lida com frequentes falhas individuais. Os jogadores parecem sempre nervosos. Nem poderia ser diferente. Vide o caso do zagueiro Aderllan: tentando preencher a lacuna deixada na zaga pela venda de Maicon, Leco forçou sua contratação desagradando parte dos conselheiros, que acha o negócio uma furada. O atleta do São Paulo, hoje, já chega sob pressão.
Voltamos, então, ao M1T0. Pessoalmente, acho que a diretoria errou ao trazê-lo, mas não errou ao demití-lo. O time foi eliminado de tudo e atualmente luta contra o rebaixamento. Mas isso não quer dizer que eu credite todo o fracasso a Ceni. No ambiente doentio criado pela cartolagem tricolor não haviam condições de trabalho, menos ainda depois que ao menos três jogadores titulares e outros tantos reservas foram negociados. Para uma figura vanguardista como Rogério, cheio de ideias importadas, então, era a crônica da morte anunciada: cedo ou tarde alguém reclamaria de seu estilo, obrigando-o a recuar para o fácil, como o treinador de fato fez quando começou a escalar quatro zagueiros após sofrer alguns reveses.
E esse é, hoje, o São Paulo que Dorival Júnior assume: um clube endividado, mal administrado, ultrapassado, consumido pelas intrigas internas e pelos caprichos de seus cartolas – agora com o agravante do Z4.
Claro que isso não quer dizer que o tricolor vá, necessariamente, cair. A história está repleta de clubes que se sagraram campeões em estado de colapso. O torcedor, porém, deve se perguntar se terminar o brasileirão no meio da tabela e assim eclipsar o temerário estado de coisas atual é tão melhor do que a série B. Claro que existem clubes bem administrados que naufragam, como o já mencionado Inter, que hoje amarga o calvário da segundona. Mas vale lembrar que o Inter caiu apenas jogando futebol. Ao não fazer essa coisa tão básica, o São Paulo deixa de ganhar o dinheiro que ganha vendendo jogadores de sua base, paradoxalmente se transformando no clube brasileiro que mais arrecada dinheiro com vendas de atletas, sendo também o grande clube brasileiro com pior desempenho no campeonato nacional.
Desse jeito, o caminho trilhado pelo tricolor do Morumbi, se não o levar para buracos profundos em breve, o levará cada vez mais para longe daquele que poderia perfeitamente ser seu posto: o de maior potência do futebol brasileiro ao lado de Corinthians e Flamengo. Pois hoje, se quer estar nesse lugar que lhe pertence por direito, o São Paulo precisa fazer tudo aquilo que não faz: reformar seu estatuto, democratizar seu funcionamento, garantir a alternância no poder, profissionalizar seus cargos administrativos, reformar seu estádio (poderia, aliás, se espelhar no modelo de reforma adotado pelo próprio Inter), modernizar seu marketing, fidelizar seu torcedor, rever sua política de contratações, dar estabilidade a seu treinador, aproveitar melhor suas revelações e assim por diante.
Infelizmente para mim, são-paulino, nada disso está no horizonte atual. Por isso, para concluir, me resta torcer ao máximo para que as torcidas tricolores – muitas das quais têm o hábito nefasto de se atrelar àqueles que lhes oferecem regalias – protestem contra essa bizarrice generalizada que nos apequenou. Não deixarei de acompanhar meu time, nem que desçamos aos infernos da série Z. Mas nem por isso farei vista grossa àqueles que nos colocaram nessa situação. Que devolvam meu São Paulo!