Minha camisa verde
Poucas coisas estragam uma reputação tão bem quanto um amigo de infância. Prova disso é o que sofro sempre que o “assunto Palmeiras” é abordado em uma mesa de bar. Basta surgir uma oportunidade para meus camaradas das antigas (que felizmente não são poucos) brandirem inquisitorialmente o copo de cerveja e me acusarem de já ter sido palestrino.
Tricolor apostólico romano que sou, não preciso comentar o quanto a situação me incomoda. Até porque trata-se de uma verdade inconveniente. Ou pelo menos de uma meia-verdade.
Sim: comecei a gostar de futebol assistindo ao time do Parque Antártica. Não o time do Allianz Park, e sim o time dos jardins suspensos; o time daquele prédio que ascendia e apagava as luzes quando o Diabo Loiro estufava as redes; o time cujo estádio lembrava uma cantina italiana.
O ano era 1998 e, como a maioria das pessoas que nascem destinadas a chutar uma bola antes mesmo de andar, aprendi a amar o esporte dos deuses graças a meu pai.
O velho Afonso era nordestino e passara sua infância acompanhando as pelejas de ABC e América de Natal. No entanto, ao seguir a sina ilustrada por Portinari, veio para São Paulo trabalhar na Barra Funda e rapidamente se apaixonou pela torcida que canta e vibra. Quando a multidão verde entupia a Turiassu nas quartas-feiras, sabendo bem o que vem pela frente, meu pai colocava sua camisa verde e se incorporava feliz ao buzinaço. Quando chegava em casa, eu já estava no sofá, aguardando ansioso a dureza do prélio (apesar de só ter descoberto o significado da palavra “prélio” uns bons anos depois).
A escalação daquela equipe me vem à mente como se fosse um poema: São Marcos, Chiqui Arce das faltas venenosas, Xerife Clebão, Júnior Baiano e seu chará não menos nordestino; no meio, Galeano Rei da Raça, César Sampaio, a enceradeira Zinho e Alex cabeção; no ataque, o Diabo Loiro Paulo Nunes e o matador Oséas. No banco, ninguém menos do que um senhor gaúcho de bigode e seu auxiliar carismático, pedindo para o gandula jogar duas bolas em campo nos minutos finais.
Não ousarei dizer que “aquilo sim era futebol”. Os jovens corintianos que se apaixonaram pelos gramados em 2012 não merecem achar que seu time deve alguma coisa aos tempos pretéritos. Mas uma coisa é verdade: naquela época, gol era sinônimo de comemoração com máscara (de porco, da Tiazinha, da Feiticeira). Difícil imaginar algo tão capaz de encantar um menino de 8 anos.
Só que para o azar do meu pai, a concorrência foi dura. O velho Afonso não era chegado aos estádios. Preferia passar os fins de semana em meio a seus livros e CD’s. Um dia, o resto da família que era toda tricolor me levou ao Morumbi. Aí foi amor à primeira vista, até que a morte nos separe.
Os campeonatos se passaram e, aos poucos, a epopeia sulamericana do alvi-verde imponente se transformou em tragédia grega na minha biografia. Já são-paulino roxo, assisti o Palmeiras ser brutalmente trucidado pelo Tricolor em 2005. Na ocasião comemorei como nunca: pela primeira vez na minha vida, veria meu time sair da fila com estilo, com a taça da Libertadores na mão. Mas depois a coisa adquiriu requintes de crueldade que eu particularmente teria dispensando.
Com o coração apertado, vi meu pai lamentar o assalto são-paulino em 2006. Minha alma se dividiu em duas naquela noite: saí pra comemorar na frente do Morumbi, mas bastava lembrar a expressão de tristeza do meu velho na hora do apito final, que a cerveja adquiria um gosto amargo e eu me engasgava.
Até que em 2009, o velho Afonso se foi. Entrou, então, com todas as honras para a galeria de falecidos palmeirenses ilustres, ao lado de Oberdan Catani e Djalma Santos (pelo menos pra mim). Superstições à parte, desde então seu Palestra se afundou num pântano do qual não conseguiu sair plenamente até hoje. Veio a queda para o purgatório da segundona, veio uma fila de mais de uma década sem um título relevante e – o pior de tudo – veio uma série de derrotas humilhantes para o meu São Paulo no Choque Rei. E o sentimento era sempre o mesmo: comemorava por força do hábito, do coração tricolor ou, às vezes, por obrigação. Não adiantava pensar que, se fosse ao contrário, a Mancha Verde não teria pena de mim: lá no fundo, a lembrança do meu pai e da minha infância palestrina ainda me castigava.
Finalmente, aprendi a conviver com essa tortura. Mesmo por quê, o que seria do ser humano – principalmente do ser humano torcedor – sem suas contradições? No entanto, se você me perguntar se fiquei feliz quando meu time, repetindo sua habitual crueldade, ganhou do Palmeiras no último segundo com um gol de Alan Kardec, responderei: não.
Porque no fim, é bem possível que o velho Afonso nem reconhecesse esse Palmeiras de hoje. Provavelmente, se visse seu time entrar em campo vestido de azul ou com aquela camisa cor de marca-texto horrorosa, pensaria se tratar de alguma dessas equipes de empresários que disputam o Paulistão. Afinal, sua camisa de assistir aos jogos era bem verde, da cor da esperança. Sei disso porque ainda tenho essa camisa no fundo de uma gaveta – seja a gaveta do meu armário ou a gaveta do meu coração.
Mas talvez essa seja a medida da grandeza dessa agremiação chamada Sociedade Esportiva Palmeiras: apesar de tudo, ser palmeirense ainda é ser um gigante. Sei disso porque sou rival. E sei disso por que, hoje, mesmo com a austeridade de Paulo Nobre e o desastre da atual equipe, brindarei a essa camisa centenária que fez de mim um apaixonado pelo futebol.
Por isso, em nome do pai, meus sinceros parabéns a toda a nação palmeirense.