Por um futebol desdentado
Essa semana, Carlos Miguel Aidar – o novo Juvenal Juvêncio do São Paulo – justificou seu interesse em contratar Kaká afirmando que o meia “é alfabetizado” e “tem todos os dentes na boca” (sic). Essas características, a seu ver, são “a cara do São Paulo”.
A afirmação é abominável sob tantos aspectos que tenho até dificuldade de escolher um para começar a criticar. Vamos, então, pelo que é mais evidente e gritante:
Vivemos em um país de desdentados, e não é porque estes queiram assim. No Brasil onde sobra dinheiro para construir estádios, ainda falta saneamento básico – quem dirá dentista. Nosso sistema público de saúde é um caos na mesma medida em que os planos de saúde são inacessíveis.
Eis que, para Aidar, a solução é simplesmente excluir todos os sem-dente (por que não também os sem-teto e os sem-terra?) de seu campo de visão. Ainda que eles sejam a maioria da população brasileira, a ilustre opinião do presidente é de que eles não estão à altura de seu Clube.
Agora, desloquemos um pouco nosso foco. Essa semana, o Governo Federal investiu dois milhões de Reais na “pacificação” das favelas cariocas. Nessa operação, afim de “preparar o Rio de Janeiro para a Copa”, foram mortos dezenas de moradores pobres, sobrando até para um dançarino do programa da Regina Cazé.
Essa lógica é simples: se existe um problema social (como a pobreza) eu vou lá e mato. Ou torturo e amarro no poste, como fazem os ídolos de Rachel Scheherazade.
Para Aidar, a lógica é menos violenta, mas não é diferente: selecionar os alfabetizados é apenas a outra face da moeda que exclui os analfabetos.
Só que, como é de praxe, a ignorância faz o tiro sair pela culatra. Aidar é tão burro que faz de suas declarações um desastre de marketing que afetará seus próprios cofres.
A torcida do São Paulo é a terceira maior do Brasil. Não é preciso ser um especialista em estatística para saber que, em um país com o 85º IDH do mundo e cujos índices de pobreza ultrapassam os 15%, a maioria da torcida são-paulina é pobre.
Mas parece que Aidar nunca pisou em Paraisópolis – a segunda maior favela brasileira que, por coincidência, fica do lado do Morumbi e tem maioria absoluta de torcedores são-paulinos. Também parece que Aidar não aprendeu nada com as políticas (evidentemente limitadas e contraditórias) de Andrés Sánchez, que disparou as receitas do Corinthians ao voltar seu marketing para as massas. Parece que sequer Aidar aprendeu com seu mestre Juvenal Juvêncio, que elevou a média de público do São Paulo em um momento de dificuldade baixando o preço do ingresso para 10 R$ e criando uma arquibancada popular.
O que o novo presidente são-paulino faz, na verdade, é nada mais nada menos do que reproduzir o discurso de uma minoria fossilizada da torcida tricolor, que acredita fazer parte de um suposto grupo de elite. Faz sentido: é a minoria que o elegeu nas anti-democráticas eleições do Clube, das quais só o Conselho Deliberativo participa. Só que, ironicamente, seguindo esse caminho, o São Paulo vai se tornar um clube pobre, por que vai ter uma torcida seleta e, portanto, pequena.
O caminho contrário é seguido, atualmente, pelo Fluminense, que baixou seus ingressos para preços populares, indo na contramão da falsa e absurda ideia de que algum clube grande brasileiro ainda pode ter seguidores “de elite”, “alfabetizados” e “com dentes”. Com isso, acontece o justo: as bancadas do Maracaña, reformadas para se enquadrar no padrão Fifa e receber turistas endinheirados, voltam para as mãos de onde nunca deveriam ter saído: as mãos do povo.
Futebol, afinal, é esporte de massas, é esporte de multidões. Algum dia, essas multidões terão todos os dentes, serão alfabetizadas e terão acesso à educação mais avançada. Cobremos isso do nosso Estado. Mas até lá, não vamos excluir dos estádios aqueles que tem todos esses direitos negados pelo nosso sistema.
Afinal, o pensamento de Aidar é velho: em terra de cego quem tem olho é rei. Que ele perceba que, em terra de desdentado, quem tem dentista é inimigo. E que faça isso antes que seja tarde.