Calado, é um poeta
Romário e Ronaldo foram, sem sombra de dúvidas, os dois maiores atacantes que já vi jogar.
Mas os dois sempre foram bem diferentes, não apenas no estilo de jogo.
Pensemos n’O Baixinho, por exemplo: matador implacável dentro de campo, também anotou vários gols na Câmara dos Deputados. Entre outras jogadas magistrais, defendeu o casamento civil igualitário, fiscalizou os gastos da Copa e se engajou na campanha contra os desmandos de Ricardo Teixeira.
Já Ronaldo… Bom, Ronaldo escreveu essa coluna na Folha de São Paulo: bit.ly/1kURJXs.
Lendo um descalabro desses, só me vem à mente outra sacada brilhante de Romário, dessa vez se referindo a Pelé: “ele, calado, é um poeta”. A frase se aplica perfeitamente ao Fenômeno.
O eterno camisa 9 da seleção foi um gênio indiscutível com a bola nos pés. Também foi brilhante em sua escalada ao seleto hall de fenômenos de marketing milionários, produzidos pela indústria do esporte em parceria com os meios de comunicação de massa.
No entanto, em se tratando de cidadania, Ronaldo é um perna-de-pau contumaz. E provou isso na referida coluna.
As caneladas começam já no terceiro parágrafo do texto, após uma introdução água com açúcar: “A Copa do Mundo precisa de investimentos e muito trabalho, mas rende frutos para o país e para a população”, diz o Fenômeno.
Que a primeira parte é verdade, ninguém duvida – Dilma que o diga. Agora, sobre render frutos, talvez Ronaldo tenha se esquecido da África do Sul, com seus estádios padrão-FIFA abandonados, sua seleção medíocre, seu campeonato nacional irrisório e seus favelões a céu aberto.
Mas tudo bem! No parágrafo seguinte, o Fenômeno apresenta um cálculo absolutamente delirante para nos convencer. Veja só: “Vamos imaginar que o país seja uma família e sua renda mensal o orçamento da União em 2014. Essa família tem uma renda mensal de 2.480. Desse orçamento, R$ 188 vão para a saúde e educação dos filhos (!). Essa mesma família, nos últimos sete anos, sem qualquer prejuízo ao orçamento mensal, tirou 3,90 da ‘poupança’ e investiu num negócio, que vai gerar empregos e pagar impostos”.
Qual a conclusão brilhante que Ronaldo tira daí? Simples: que é absolutamente trivial o fato de um banco estatal (BNDES) torrar 3,8 bilhões na construção de mega-arenas, mesmo em se tratando de um país que figura em 58º lugar em um ranking de educação onde concorrem 65 países. Afinal, em seu mundo, é possível uma família educar os filhos (atenção para o plural) com apenas R$ 188 – mesmo que os hospitais e escolas públicas encontrem-se em situação periclitante, e os professores do Estado do Rio de Janeiro tenham acabado de protagonizar uma greve histórica.
Mas não para por aí: o Fenômeno também acha normal o fato dos “governos locais” investirem “valor semelhante” em obras para a Copa, já que, posteriormente, vão “lucrar” (?) muito. Como exemplo desse ótimo negócio, nosso articulista cita Porto Alegre, cujo PIB crescerá supostos 500 milhões de reais após a Copa.
Eu, no entanto, ainda sou do tempo em que o Estado não era empresa, e não entendo porque governos deveriam lucrar. Afinal, PIB se calcula a partir de produção e investimentos, sem necessariamente significar qualquer melhoria social. Prova disso é a China: simultaneamente um dos maiores PIBs do mundo e um dos maiores índices de mão-de-obra escrava já registrados na História.
E, aqui, chegamos ao ponto nevrálgico do argumento de Ronaldo: fluxo de capital em um país não significa melhoria da qualidade de vida do povo!
Se alguém se beneficiará das obras faraônicas exigidas pela FIFA serão os empresários da construção civil. Se alguém se beneficia da Copa são os donos de hotéis e negócios diversos.
A população trabalhadora, esta continua pagando os impostos que serão investidos nos estádios e obras. Mas também continua sendo despejada da Favela do Metrô, ou da aldeia Maracanã – ou então morrendo em péssimas condições de trabalho, como no caso dos operários de Itaquera.
Mas Ronaldo vive em outro país. Seu Brasil, diz ele, se destaca “em biocombustíveis” (que geraram uma desigualdade fundiária abissal no campo), em “exploração de petróleo” (cuja extração foi vendida para estatais chinesas), em “produção de aviões” (comprando caças da França e privatizando os aeroportos) e tendo uma “agro-indústria que alimenta boa parte do planeta” (fruto de um atraso colonial de 500 anos, que transforma o país em um exportador de commodities).
Assim sendo, porque investir aqueles 3,9 bilhões em educação, não é mesmo? A educação não gera “lucro”… Ou, como já disse o Fenômeno: Copa do Mundo não se faz com escolas.