Os mitos sobre o Mito
O que é preciso para ser um mito no futebol?
Conquistar os maiores títulos possíveis, inclusive a Copa do Mundo pela seleção do seu país, bater recordes, ser durante anos capitão e líder do seu time de coração, tornar-se o principal jogador da história dele e, quem sabe, até mesmo superar os limites da posição em que atua?
Se a resposta for sim, Rogério Ceni é um mito.
E desde a derrota do São Paulo para o boliviano The Strongest, na altitude de La Paz, na qual Rogério engoliu uma dupla de frangos e quase pôs tudo a perder na Libertadores, desejo escrever sobre um curioso fenômeno que atinge o goleiro: o simultâneo amor e ódio que desperta, sem qualquer chance para o meio termo.
Mas a correria da vida não me permitiu fazê-lo e, após a heroica classificação tricolor ante o Super Galo, prometi, para mim mesmo, que publicaria tal coluna até o início da próxima semana. No meio do caminho, porém, eis que surge o polêmico vídeo do vestiário são-paulino e as igualmente polêmicas opiniões dos ótimos André Barcisnki e Juca Kfouri, ambos colunistas da Folha de São Paulo (clique AQUI e AQUI e leia os dois textos de Juca, o segundo respondendo a alguns comentários feitos no primeiro).
Realmente foi descabida – senão absurda – a comparação que Barcinski fez de Ceni ao Feliciano, mas concordo com Juca que o tom do camisa 01 em tal vídeo é de um pastor na mais eufórica pregação, sem qualquer tipo de menosprezo à classe e aos evangélicos, de uma forma geral. Contudo, não quero me estender nos comentários feitos pelos dois jornalistas, pois minha intenção, aqui, é tratar dos mitos que envolvem o Mito. E que são vários, além de possuírem total relação com a repercussão sobre o vídeo.
Não é o fato de Rogério Ceni pensar com sua cabeça, ter posições convictas e profundas sobre futebol e outros assuntos e exercer uma natural postura de líder que faz dele arrogante e mau-caráter. Assim como não é o fato de RC ter batido recordes inimagináveis com a camisa do São Paulo e, sem dúvida, ser o maior atleta da história do clube que faz dele inquestionável. E Juca Kfouri tem razão quando critica o fato de o capitão, na preleção do jogo contra o Atlético-MG, falar muito mais vezes a palavra “você” do que a palavra “nós”. Individualismo, pro bem e pro mal, é mesmo um pecado constantemente cometido pelo goleiro.
Mas tal preleção, e tantas outras que podem ser assistidas no YouTube (algumas delas disponíveis abaixo), demonstra um poder de liderança que, no momento, não me lembro ter visto em outro jogador. Liderança que classificou o São Paulo, quando já se duvidava, para as oitavas desta Liberta. Liderança que faz com que, há muito, se fale que Rogério será presidente do Tricolor depois de aposentar-se. Liderança que também pode ter fins discutidos, como foi o apoio do arqueiro à última candidatura de José Serra, do PSDB, à Prefeitura de São Paulo.
Sim, RC também é obcecado pela camisa que veste, pela perfeição e, se não bastasse, não sabe perder. Mas somente tais características, embora todas em excesso, fizeram dele o vencedor que é. Sem elas, jamais ele aprenderia a bater faltas com precisão mais aguçada que da maioria dos jogadores de linha e se tornaria o mais competente goleiro-artilheiro que os livros sobre futebol já contaram. Nada, entretanto, que lhe permita interferir no trabalho de seu treinador, como andou fazendo com Ney Franco, ao dar pitacos no esquema tático da equipe e pedir a escalação de jogadores.
E se Rogério não é santo, eu também não sou. Você, raro e caro leitor, e mesmo o palmeirense Marcos, que tem um “São” como prenome, igualmente. E não se espera que isso aconteça em nenhum dos casos. No dos dois goleiros da seleção brasileira pentacampeã, eternamente comparados pelo fato de serem os últimos ídolos com letras maiúsculas de dois dos principais clubes do País e coincidentemente atuarem na mesma posição e época, há uma impressionante diferença de popularidade.
Ela se dá, no entanto, pelo perfil pessoal de cada um e não exatamente pelo desempenho deles dentro de campo. Marcão é simples, extremamente carismático, engraçado, piadista, tem sotaque caipira, é católico e demonstrava isso a cada defesa, início e término de jogo. Rogério, em contrapartida, não é religioso, mas muito crítico, articulado, exigente e culturalmente diferente da maioria em seu meio, portanto chato – e o narrador Milton Leite concorda com o último adjetivo.
O excesso de simpatia de um e a falta dela para o outro faz com que se use dois pesos e duas medidas quando ambos protagonizam situações idênticas. Um exemplo é que, por várias vezes, Marcos, nos seus momentos de fúria, se valeu da condição de ídolo inquestionável para criticar publicamente os companheiros de equipe, sem se colocar dentro do problema. A repercussão disso, tanto por parte de palmeirenses como de torcedores de outros clubes, foi quase sempre a favor do camisa 12. E Rogério é quase sempre criticado, inclusive por são-paulinos, quando faz exatamente a mesma coisa.
Na hora em que a comparação é técnica, chega-se ao absurdo de afirmar que, debaixo das traves, Rogério não só é infinitamente pior que Marcão como, também, apenas se destaca porque cobra faltas e marca gols (!).
E olha que este que escreve é palmeirense, devoto fervoroso de São Marcos, que o tem como ídolo de infância, como um dos principais no futebol, e quem é leitor deste blog sabe que algumas das minhas publicações aqui exemplificam isso.
Mas nem deveria ser necessário citar esse fato.
O ponto é que a idolatria ignorante e a rejeição invejosa que, ao mesmo tempo, diferentes públicos direcionam a Rogério só atestam a necessidade de se ter opiniões pluralizadas em qualquer tipo de discussão. E, então, sem maniqueísmos, por favor!
Rogério Ceni não é um mito porque não tem defeitos ou porque os que tem não merecem ser criticados. Ele também não é um mito porque é melhor ou pior que ninguém, mas porque, no futebol, mais especificamente num único clube, conseguiu o que poucos conseguiram.
Em suma, Rogério Ceni é um mito porque nunca alguém personificou o São Paulo como ele. Porque nunca alguém quis e se esforçou tanto para isso. E no endinheirado futebol de hoje, só não digo que ninguém mais o fará porque, como deu para notar ao longo deste texto, não existem verdades absolutas.
Assista abaixo o polêmico vídeo da preleção de Rogério Ceni antes da vitória contra o Atlético-MG, pela Libertadores, e outros discursos do capitão antes de jogos importantes. Imagens que mostram que, embora com defeitos, Rogério é um dos maiores líderes que o futebol brasileiro – e por que não mundial? – já viu. Nada anormal. Pelo contrário, seria anormal se fosse diferente.
São Paulo 2 x 0 Atlético-MG – Último jogo da fase de grupos da Libertadores 2013 – Morumbi – 17/04
São Paulo 3 x 1 Ponte Preta – Oitavas de final da Copa do Brasil de 2012 – Morumbi – 11/05
São Paulo 3 x 1 Portuguesa – 25ª rodada do Brasileirão de 2012 – Morumbi – 15/09
Goiás 0 x 1 São Paulo – Jogo do hexacampeonato – Serra Dourada – 07/12/2008