As chuteiras abertas da América Latina – Quando a História se repete
Reza a lenda que, certa feita, pediram a Carlos Drummond de Andrade que declamasse um poema, qualquer que fosse. E, meio displiscente, o poeta decidiu surpreender.
Ao invés de recitar “A flor e a náusea”, ou “Uma pedra no meio do caminho”, Drummond escalou na lata: “Dorval, Mengálvio, Coutinho, Pelé e Pepe”. A legendária linha de frente do Santos era poesia pura.
Acontece que, se o poeta fosse uruguaio, certamente responderia diferente. Provavelmente, escalaria: “Abadie, Pedro Rocha, Spencer, Sásia e Joya”.
Esses eram os nomes dos craques que formavam o ataque do Peñarol da década de 60. E era esse o Peñarol que, à época, brigava com o alvi-negro de Pelé pelo título de “melhor time do mundo”.
De fato, os dois times se trombaram na final da Libertadores de 63, em uma série de jogos das mais eletrizantes da história. A vitória foi do Santos, e a alegria foi da torcida, que presenciou três partidaças.
A questão é que, hoje, 48 anos depois, a história vai se repetir. Mais uma vez a Taça Libertadores da América será decidida por Santos e Peñarol.
Não, não é aquele Peñarol. Nem de longe. É apenas o Peñarol de Martinuccio.
Neymar e cia são melhores, e muito. Os onze titulares do time uruguaio não tem, juntos, o talento de Ganso.
Aliás, ao contrário de muita gente, não acho que o futebol uruguaio esteja se reerguendo. Os grandes jogadores da equipe terceira colocada na África do Sul tinham, na média, 30 anos. O país já não produz grandes revelações e, de tão falido, teve que esperar o bicho da Copa chegar, para começar o campeonato.
Mas pera aí: isso quer dizer que os santistas já podem comemorar? Definitivamente não. Dar os “charruas” por mortos é o pior erro que se pode cometer.
Inter e Vélez também eram melhores. E os dois morreram.
Isso porque o Peñarol é o time do imponderável. É o time que, mesmo jogando pior, acha um gol onde ninguém imagina. Depois se fecha e segura o resultado. Foi assim no Beira-Rio, foi assim em Liniers. E pode ser assim em São Paulo.
Além disso, desde o Maracanazzo, os uruguaios não têm medo de estádio lotado. Jogam bem fora de casa, e muito.
Por isso, volto a dizer: o Santos tem o melhor time do continente. Mas vai ter que suar muito para ganhar dos carboneros.
Se, na década de 60, o atacante Pepe Sasia jogou areia na cara do goleiro Gilmar para fazer um gol de cabeça, dessa vez vai ter gente jogando areia, e o que mais tiver pela frente.
Caberá a Neymar e cia não caírem na catimba, e manter os olhos sempre bem abertos. Qualquer cochilo da zaga, pode ser fatal.
Além disso, é fundamental não fazer o jogo do Peña: o jogo truncado, de bola na área e muita força. É esse o jogo do time mais fraco, e o Santos é mais forte.
E é bom lembrar: o Peñarol já ganhou mais de uma Libertadores com gols nos últimos minutos. Também já protagonizou viradas improváveis. Para ser dado como fora de combate, só mesmo quando o juiz apitar.
Por isso tudo, não sei quem vai levar, tampouco quero saber. Quero só degustar a oportunidade de ver um duelo histórico se repetir ao vivo.
Em seu livro “Futebol ao sol e a sombra”, o escritor uruguaio Eduardo Galeano lembra de meninos de seu país, que, voltando de uma pelada, cantavam: “ganhamos, perdemos, igual nos divertimos”.
Eu me divertirei, e muito. E aconselho que você faça o mesmo. Os deuses da bola estarão fazendo o mesmo.
* Todos os sábados, nesse mesmo espaço, Gabriel dos Santos Lima assina a coluna “As chuteiras abertas da América Latina”, onde fala do futebol do continente.