As chuteiras abertas da América Latina: Um exemplo a ser seguido
Há mais ou menos uma semana atrás, ao abordar o tema do racha no Clube dos 13, disse que “um dos absurdos do futebol brasileiro é o fato dele ser privatizado”. Dessa ideia eu não abro mão.
Você já se perguntou, por exemplo, para onde irá o dinheiro que a CBF vai ganhar no amistoso contra a Escócia?
Já se perguntou porque cargas d’água os clubes brasileiros nunca jogam amistosos contra clubes estrangeiros? Ou porque só a camisa da seleção brasileira é vendida nas lojas do exterior?
Vale a pena se perguntar. Tudo bem, tudo isso se deve a uma estrutura que está aí há tempos. É difícil de acreditar que, com Ricardo Teixeira há 26 anos no poder, essa realidade vá mudar.
Acontece que esse não é um problema exclusivamente nosso. Existem países que, mesmo em situações economicamente muito piores do que o Brasil, já começaram a se mexer.
Olhe para a Argentina, por exemplo. O que Cristina Kirchner fez com o futebol do país deveria servir de exemplo para nossa presidenta Dilma Roussef. Ainda mais nessas semanas em que a Globo ameaça dar um golpe na democracia, com o aval da CBF.
Veja só: a economia dos nossos “hermanos” está num buraco muito mais fundo do que a nossa. O peso argentino, cotado a menos de um quarto de dólar, é prova disso.
Imagine você, então, como não está o futebol deles.
Quem tem acompanhado o Clausura 2011, sabe que o campeonato começou com meses de atraso, em função da enorme dívida salarial que os clubes da série A tinham com seus atletas.
Nem poderia ser diferente. As previsões mais otimistas falavam em 10 milhões de dólares.
Isso, vale lembrar, em um país em que o jogador mais bem pago do campeonato – Riquelme – ganha menos de 400 mil reais, diferentemente do Brasil, que tem Ronaldinho Gaúcho recebendo mais de 1 milhão R$ por mês, sem falar em Felipão, Muricy, Deco, Neymar e outros.
E você pensa que a cartolagem argentina é diferente da nossa? Não mesmo…
A AFA (Asossiación Futbolística Argentina) é presidida por Júlio Grondona, uma figura tão nebulosa quanto Ricardo Teixeira que, de tanto poder que tem, ganhou a queda de braço com Maradona pelo comando técnico da albi-celeste.
E olha só que interessante: nem por isso, a presidenta Kirchner deixou de estatizar o futebol local.
Isso mesmo: na Argentina, o campeonato nacional passa no que seria a TV Cultura, para nós brasileiros.
O melhor é que, lá, ninguém reclama disso, afinal, antes, os direitos de transmissão pertenciam ao Grupo Clarín que, em seu canal, só transmitia um jogo por rodada na TV aberta, enquanto os outros ficavam restritos à TV paga. Além disso, os gols da rodada também eram propriedade do grupo, e só podiam passar em outros canais depois de serem transmitidos no programa “Fútbol de Primera”, que ia ao ar Domingo à noite.
O que fez o governo argentino diante dessa apropriação indébita do futebol do país? Muito simples: pagou as dívidas dos clubes e criou o programa “Fútbol Para Todos”.
Hoje, com o novo projeto, TODOS os jogos da primeira divisão do país são transmitidos em TV aberta, bem como os gols que são mostrados nos intervalos das partidas.
Os clubes, que antes recebiam 50 milhões US$ do grupo Clarín, hoje recebem, do Estado, o triplo desse valor, e já conseguem respirar com mais tranquilidade.
Claro que os antigos proprietários dos direitos não deixaram barato. Diariamente, os jornais Clarín e Olé!, além da rádio Mitre e dos canais LN e 13 (todos estes, pertencentes ao grupo Clarín), descascam o “Fútbol Para Todos”. Só que, agora, os torcedores saíram ganhando e não dão mais ouvido a críticas corporativistas.
Além disso, o argumento do governo argentino em favor do seu programa é muito claro: o futebol é patrimônio cultural nacional e, por isso, pertence unica e exclusivamente ao povo, não podendo, nunca, ser privilégio de quem pode pagar.
Agora pegue esse argumento e me responda: no Brasil é diferente?
Não somos “o país do futebol”? O país sede da próxima Copa do Mundo? Nossos clubes não estão endividados? Nossos canais não passam só um jogo por rodada, deixando o torcedor refém de Pay-per-views e SporTV’s?
Porque o nosso Estado, que está torrando milhões da verba pública para construir estádios particulares, não ajuda os nossos clubes?
Porque a Globo se apropria do campeonato brasileiro, rachando o Clube dos 13 e passando por cima da concorrência de maneira desleal – tudo isso com apoio integral da CBF – e ninguém faz absolutamente NADA?
Televisão, por Constituição, é propriedade do Estado. Explorá-la é uma questão de concessão.
Que Dilma Roussef se lembre disso, e tenha coragem para peitar os piratas do nosso patrimônio cultural.
É preciso coragem, mas Cristina Kirchner já deu o exemplo.
* Todos os sábados, nesse mesmo espaço, Gabriel dos Santos Lima assina a coluna “As chuteiras abertas da América Latina”, onde fala sobre o futebol do continente.